Esqueça a ideologia. Exclusão cria tendência que deve impactar regras e limites para conteúdos
Para quem estava em outro planeta nas últimas 4 ou 5 semanas (vai que né?), é meu dever informar que nos primeiros dias de janeiro deste ano, o então ainda presidente dos EUA, Donald Trump, foi cancelado. E não foi um cancelamento qualquer. O então homem mais poderoso da terra teve seu perfil suspenso ou restrito em 12 das principais redes sociais do planeta (além de Instagram, Facebook e Twitter, Trump levou cartão vermelho do Google, Snapchat, Shopfy, Reddit, Twitch, YouTube, TikTok, Discord e Pinterest).
A medida foi tomada logo após o tumulto no congresso dos EUA, cuja sede foi invadida, em 6 de janeiro, por pessoas que buscavam impedir a confirmação de Joe Biden como sucessor de Trump. Cinco mortos e um vexame histórico depois, Twitter e Facebook avaliaram que não bastava colocar em suspeição ou apagar mensagens de Trump consideradas fake news.
TRUMP BANIDO, E DAÍ?
Dando um passo além, decidiram eliminar os perfis do presidente. Segunda elas (e diversos analistas) as plataformas foram usadas por Trump para incitar parte dos norte-americanos a atos de violência com base em fatos sem comprovação. E isso violaria as regras de conduta destes fóruns. As demais redes seguiram a tendência e praticamente encurralaram Trump. Como se isso não bastasse, a Parler, rede que se lançou como opção por não ter moderação de conteúdo, foi banida pelas lojas de apps e perdeu espaço de armazenagem na Amazon.
E é aqui que começa um debate fundamental para quem trabalha ou se interessa pela comunicação nas redes sociais. Afinal, Trump banido é censura ou sensatez? O que ele nos diz sobre os limites da livre expressão nas redes sociais? E sobre a necessidade (ou não) de se regulamentar o conteúdo? Qual o efetivo poder das empresas de tecnologia para formar opinião? Maior que o do mandatário do (ainda) mais rico governo mundial?
SEM LIMITES?
Um dos principais argumentos de quem ataca a medida das redes é que ela fere o sagrado princípio da liberdade de expressão. Especialmente nos EUA, onde este direito é garantido desde a primeira emenda à constituição local, de 1791 e levado muuuuito à sério. Mas a verdade é que, por mais permissiva que seja (especialmente para nós, brasileiros) até a legislação norte-americana prevê limites para a comunicação de ideias e conceitos. Obscenidades, discursos meramente difamatórios e palavras de guerra (entre outros) não são aceitos nem mesmo na terra da liberdade.
As próprias redes possuem suas regras e serviços de moderação que preveem inclusive a possibilidade de banir quem as infringem. E que bom que servem para todos, inclusive ao presidente dos Estados Unidos.
Então vamos combinar que, sim, existem limites, ok? Mas, a partir daqui, temos outra questão levantada pelos críticos ao cancelamento de Trump (de seu filho Donald Jr. à chanceler alemã Angela Merkel): quem é que pode decidir quando estes limites são ultrapassados?
TUDO POR DINHEIRO
Em sua defesa, as redes levantam um ponto que insistimos em esquecer. Elas são empresas privadas e seus serviços, mesmo que gratuitos em sua maioria, seguem um acordo que o usuário aceita (muitas vezes sem ler) e que lhes garante este direito.
Só que (claro) não é tão simples assim. Pois, como muitos críticos e defensores de Trump lembram, existem muitos outros exemplos de pessoas (muitas delas em posições de liderança) que usam as redes de forma, digamos, questionável, e não sofrem o mesmo tipo de intervenção. O próprio Trump, por praticamente todo o espaço de sua presidência, fez diversas postagens polêmicas (algumas consideradas mentirosas) e teve pouca intervenção por parte das empresas. Quem imaginava Trump banido há um, dois anos atrás? Tanto que diversos especialistas criticaram bravamente Twitter e Facebook por não fazerem valer antes as tais regras de moderação de conteúdo com Trump. E elas só começaram quando ficou claro que seu governo iria acabar.
A posição de empresa privada, que visa o lucro, tem um ponto aqui. Para o mercado, Trump era um trunfo (desculpem, não resisti ao trocadilho infame) para as redes. Não é a toa que o Twitter perdeu 12% de seu valor de mercado – nada menos que U$ 5 bi - quando anunciou o bloqueio ao perfil do líder republicano.
PÚBLICO X PRIVADO
E é aqui que a trama se adensa. Criado como um serviço privado, as redes sociais têm hoje um enorme impacto público. Para alguns analistas, elas estão mudando o jogo e contribuindo decisivamente para o que muitos consideram efetivas ameaças à democracia.
Mas, considerando que esta análise é concreta, colocar este poder nas mãos dos governos, no exato momento em que diversos países vivem regimes autoritários (muitos deles fantasiados de democráticos) não seria um suicídio? Por outro lado, manter o mando com empresários que visam o lucro e, para isso, precisam ter boas relações com os governos, não seria tão ou mais arriscado?
Na Europa, por exemplo, onde a visão de que um serviço de comunicação é essencialmente público (mesmo que gerido por uma empresa privada) a decisão das redes foi vista como uma impensável imposição do poder privado.
NOVOS TEMPOS, NOVAS REGRAS
Ainda não temos uma resposta para esta charada. Provavelmente, precisaremos de algum tipo de regulação mais efetiva para este tipo de serviços e conteúdos – a aposta europeia. E um trabalho grande de educação de seus usuários sobre os limites de suas postagens e comentários.
E, para os gestores de comunicação de marcas e empresas, assim como para os criadores de conteúdos, fica o alerta de que o vale tudo das redes sociais pode estar com seus dias contados.
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